Estilhaços de um romance (19)
Abril 29, 2012
Isabel Afonso
Naquela casa, a mãe, a cozinha, a máquina de costura, o bolo de fatia ao Domingo resumiam quase tudo, ela e os irmãos na sala, nos corredores, aos pulos, aos saltos e a mãe aos gritos entre brigas e trabalhos de casa, lanches e roupa na corda, o pai, estava lá mas ao certo havia uma parte da vida que convertia em dinheiro, como passava as horas não sabiam.
Ao fim de semana não podiam fazer barulho para que dormisse sem que ninguém o importunasse, embora o amasse, ele tornava-se ausente mesmo
quando estava presente, evitava a canalha e as questões domésticas, onde se construía uma narrativa a que era alheio, as diferenças no tratamento dos filhos, as facadas no ego de uns para que outros crescessem a pensar que eram donos do mundo, alheava-se disso, não participava e ao fim de semana seria bom que não o incomodassem, mal sabia ele que isso lhe iria sair muito caro.
Eram três, dois rapazes e ela, a mãe saber-se-ia lá porquê, adorava o filho do meio, parecido com um tio, ou irmão, nunca chegara a uma conclusão, para ele estava reservado o melhor, o mais novo chegara quatro anos depois de aquele cenário estar alicerçado, estava fora de cena, servia de negativo na fotografia onde o outro tinha sempre uns caracóis amorosos e de tão lindo que era não precisaria de desenvolver grandes habilidades noutras áreas, ainda hoje se orgulha de uns paninhos bordados por ele e de um certo arroz que faz como ninguém.
Olha que baralho lhe havia de calhar, se assim era, havia outras áreas da casa por habitar, uma máquina de escrever Hermes, que era quase como ter um deus do monte olimpo no seu quarto, era nesse esgalhar de letras que enfiava os dedos por entre o teclado, aquelas fitas de duas cores vermelho e negro, uma espécie de lápis para apagar os erros dactilografados e o som, esse adorava-o, dava-lhe adrenalina, misturado com o cheiro do café de saco que vinha da cozinha, quando havia tempestades os galhos das árvores chicoteavam a vidraça e por uma ou outra vez, as anonas desprenderam-se dos ramos e estilhaçaram os vidros, caindo sobre a mesa onde escrevia, adorava, quando a natureza se metia com ela, despertava nela alguns prazeres que não partilhava com ninguém.
Uma amiga da mãe apercebeu-se e para equilibrar as forças convidava-a para colocar nos bolos de noiva as grangeias coloridas, talvez tenha sido o seu primeiro encontro com a arte, adorava ir para casa dela, fazia bolos de noiva para pessoas amigas, não para obter lucro, por isso não havia contas nem lamentações acerca dos preços, havia sim, açúcar branco e luminoso como seria também a cocaína alinhada em riscos por quem mais tarde se viciara,
há tangos, que embora brancos, impõem-se.
Em África, uma miúda agarrada a uma máquina de escrever, não é muito comum, dos espaços exteriores estava condicionada, a educação judaico cristã e a origem portuguesa dos pais imprimiam certas regras, aquela máquina mais meia dúzia de livros eram o seu mundo, um pé de café debaixo de uma nespereira e o jogo das escondidas à noite com todos os miúdos das redondezas, enquanto os pais bebiam copos nas casas uns dos outros, aí ensaiava as primeiras aventuras amorosas com alguns rapazes, coisas de pele, uma actividade clandestina muito requintada, ninguém se apercebia, labirinto alicerçado no passado por em excêntrico que plantara num imenso terreno árvores de fruto de todas as partes do mundo, ela tinha a sua preferida, uma laranjeira rachada ao meio por um raio durante uma tempestade tropical, os mais novos iam para um lado e os mais velhos para outro, era assim que se iam descobrindo, não havia raparigas, todos queriam a sua atenção, como era boa aluna, tinha um ascendente sobre alguns que frequentavam a mesma escola, na época ficava fascinada pelos mais velhos, andavam de mota e estavam a inventar uma forma de fazer cinema.
A vida corria por entre os dias, aprendera desde cedo a não se mostrar muito feliz com as coisas, a mãe não gostava das suas gargalhadas, escavou um espaço interior, onde poucos tinham acesso, uma elitista por razões cimentadas no seu interior.
Um dos rapazes oferecera-lhe um carros de rolamentos, havia um outro grupo que se reunia no passeio, do qual também fazia parte, esses eram todos mais velhos do que ela, o carro de rolamentos permitia que participasse nas brincadeiras, ele empurrava-a e ela conduzia o bólide, a corda presa ao
eixo das rodas da frente permitia-lhe mudar de direcção, o rapaz que lho oferecera não era o mais bonito do grupo, mas estava rendida à sua habilidade para fazer carros de rolamentos e assumira também a responsabilidade de fazer as afinações, numa ocasião beijaram-se quando no final da noite qua as formigas voadoras rodopiavam em volta do candeeiro de rua e ela ficara a olhar para cima, ele de olhos postos nos seus lábios, não consegui resistir-lhe.