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espaço destinado a pequenos prazeres

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A cereja em cima do bolo II

Agosto 29, 2013

Isabel Afonso

Vagueava pela vila de ruas empedradas, esplanadas de café, casas apalaçadas, vestígios evidentes de vidas calmas ou até gloriosas, bailes, festas, bolos adornados com cerejas trazidas do Fundão por um qualquer parente próximo.

Ela no entanto não conseguia usufruir, apoderar-se da cereja majestosamente instalada no cimo do bolo, havia nela essa impossibilidade, e a sua felicidade compunha-se de fragmentos de outra natureza, boicotava qualquer possibilidade de ser feliz, deleitava-se com  prazeres impopulares e sabia que estava a um quase nada dessa felicidade absoluta e fotogénica.

Anotou na agenda o número de telefone da psicoterapeuta, falou com a rapariga da recepção para se inteirar dos métodos usados, estava fora de questão uma lobotomia ou mesmo um regresso ao útero, o trabalho seria de reestruturação de alguns vícios de atitude face a situações a identificar.

Iria gastar uma pipa de massa e em Setembro já não havia cerejas.
Como poderia usufruir da chuva a pensar nas cerejas, dobrou o papel onde escrevera o contacto da doutora, desenhou nele duas lindas cerejas unidas por um delicado galho e guardou-o numa gaveta.

A chuva batia na vidraça e recordava naquele instante um amor desses que se tecem entre a chuva e chávenas de café negro, ainda se lembra da forma como ele fazia cálculos para não se molhar.

O problema  estava escrito no quadro, alguns alunos haviam encontrado a solução e saíram, eles ficaram, tinham seguido um raciocínio que não os levava a uma resposta concreta, como chegaria aquele rapaz a casa sem se molhar num dia de chuva, a mascar uma chuinga e a atirar pedras aos sapos.

Ele traçou uns riscos num papel pardo e chegou à conclusão provisória   que não podia atirar pedras aos sapos sem se molhar por isso o problema não tinha solução.

Ela considerou que naquela noite não ia para casa, ficava a ouvir a chuva e depois pela manhã comprava as chuingas e ia atirar pedras aos sapos.

Escurecera, o contínuo batia à porta para que saíssem da sala pois iria fechar os portões, foi então que se aperceberam que estavam só os dois na sala de aula.

Saíram da escola, caminharam pela rua no mesmo sentido, ela partilhou com ele o guarda-chuva, ele sacudia os pingos de chuva que lhe caíam no casaco, ela achava aquilo uma incompetência para lidar com os fenómenos da natureza, propositadamente desapertou um dos botões da blusa, ele olhou-a e depois virou a cabeça para não se confrontar com o facto de não poder racionalizar as suas emoções, afinal não poderia atirar pedras aos sapos sem se molhar.

Ela exagerou e conduziu-o para uma imensa poça de água que ambos atravessavam, ele nem dera conta, estava encharcado, os sapatos ensopados, aqueles de camurça, nunca mais seriam os mesmos, aquele vício de usar sapatos de camurça sempre lhe saíra muito caro.

Ela ria, sempre adorara meter os pés nos charcos de água,fazia-o sempre que podia, estava a olhar para ele enternecida com a sua atrapalhação.

Sim, dava tudo zero, não fossem os abraços para contradizer toda a lógica, nesses instantes as quadrículas agitavam-se no ar, rodopiavam junto às janelas e faziam pequenos loopings em tangentes suicidas sobre os charcos que abundavam no quintal, neles mergulhava toda a racionalidade envolta em lama e água estagnada.

Pela manhã ela percorria descalça, o caminho enlameado e recolhia as folhas, punha-as a secar e à noite na ausência dos abraços passava-as a ferro, de lágrimas suspensas entre os cílios, abria a porta dos números e das equações e voltava tudo a dar zero…ou seja NADA.

 Ainda se lembrava das histórias mirabulante que a avó inventava para ela adormecer...

Certo dia, estava ela deitada na  relva a ler a história do Hipopótamo Orelhinhas, quando estava a ler a página «2», o «H» de hipopótamo  o «O»  de orelhinhas e o «2» da página dois desapareceram .

Quando ele olhou  para o céu viu-os a dançar no arco-íris .

O «H» saltava do amarelo para o cor-de-rosa como um trapezista, o «O» rebolava no lilás desequilibrando o arco; o «2» escorregava no verde, a confusão era caótica.

De repente o «H» de hidrogénio tropeçou no «2» e juntou-se  ao «O»  de  oxigénio, juntos   passaram a ser H2O. O arco-íris não aguentou o  peso e projectou-os no ar .Perto do fenómeno estava uma nuvem solitária que acolheu sem hesitar a família H2O.

 H2O preencheu os buraquinhos da nuvem, passava por ali uma aragem fria e tudo se condensou,  em linguagem comum quer dizer que a nuvem passou do estado  gasoso ao estado líquido e também quer dizer que começou a  chover.

A confusão era caótica,  as gotas de  água eram  lançadas para a terra, a família  H2O ficou presa nos ramos de uma amoreira.

O menino regressou ao mesmo lugar , abriu o livro e para que tudo voltasse a ser como antes, H2O desprendeu-se dos ramos e foi para dentro do livro.

Assim como ela, também ele tinha um avô que se esforçava para que ele gostasse de Matemática, pois naquela época pensava-se que os números governavam o mundo...

"não estava sol nem chovia; mas o sr. gomes abriu o guarda-chuva e congratulou-se. agora era o senhor daquela circunferência.

o enormíssimo pi, o 3,14 infinitésimal, era o seu perímetro constante de estar no mundo, a dimensão do seu espaço no espaço que era a rua, que mais nenhum transeunte poderia ocupar.

 

debiaxo do guarda-chuva, o sr. gomes era rei absoluto gozando de protecção absoluta. quem sabe poderia até conquistar outros espaços, de outros senhores menos precavidos. e então, qualquer dia, talvez fosse o senhor não só do seu perímetro mas de toda a rua; e dos outros espaços  de outras circunferências para além da rua. e então 3,14 seria um resultado maior de uma multiplicação no terreno social, expandido numa dimensão tão humana quanto geométrica.

 

mas um dia toda a rua estava cheia de chapéus. e já não havia espaço para o senhor gomes, que em vão sonhara em conquistar o mundo. agora cada um tinha o seu pi pessoal, o seu 3.14 microcósmico com que, em vez de partilhar, impunha também o seu espaço. e o cruzamento das circunferências contendentes explodia em contundentes colisões sociais, desenvolvia-se em ódios incompreensíveis, em gestos absurdos.

as mãos elevaram-se, as vozes soltaram gritos, os chapéus desfizeram-se até que cada um já so tinha um pega, um braço, uma vareta.

à noite já não havia chapéus, nem circunferências, nem palavras de ordem.

só homens trespassados por varetas ao longo do chão da rua."

 

Há manhãs assim, claras, o café, os ovos mexidos, o gato, o som dos barcos a entrarem na Barra do Tejo, o sino da igreja, a chuva no telhado ensaiando aquela melodia de acordes improvisados que bem conheces, e claro a tua ausente presença também se faz notar; não seria difícil saíres daqui sem te molhares, lá em cima no sótão estão uns chapéus antigos de varetas grossas, aqui junto a mim há uns pedaços de papel onde é possível traçar alguns segmentos de recta e os teus pés sobre eles, dou-te o chapéu e tu ficas impressionado com o seu tamanho, não reparas nos estragos feitos pelas traças, os pingos caem e trespassam o pano, molham-te os pés e o carvão mistura-se com a água e agora os segmentos de recta são uma mancha cinzenta, vou ter de te redesenhar a expressão aproveitando alguns traços, engrossando outros através da pressão que exerço sobre o lápis, estás aflito, no entanto caminhas ensopado em água, a distância que nos separa cada vez é maior.

Dobro o pedaço de papal envolto numa aguada cinzenta e beijo-o, nele fica impresso o meu baton vermelho, aprendi isto com uma amiga, dizia ela que

Dessa forma sempre que escrevia assumia um compromisso com aquilo que havia de mais autentico em si mesma, como sou pouco dada a compromissos, este parece-me bem, aparentemente inofensivo, como são todas os perigos com que me envolvo.

Essa amiga por exemplo, apaixonei-me por ela por entreposta pessoa, só agora percebi que peças do puzzel temos em comum,

 mas como de costume já é tarde e não há nada a fazer.

Assim algumas coisas permanecerão num lugar destinado aquilo que não quero tirar a limpo, para que  escavar, retirar carradas de terra, pedras, fósseis e até raízes de árvores, há até um ou outro lençol de água onde me refresco, sementes em germinação, bichos sem olhos que sabem para onde vão, mas compreender, isso não.

isabel Afonso / MJF

 

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